Ser ou não ser: o literário
Eis a questão. De Shakespeare a Oswald de Andrade, o literário se constitui ativando memórias internas e se filiando à hábitos que constroem um campo específico: o da literatura. Assim, tal campo se consolida pela textualização de um discurso constituinte se dando no modo como é enunciado.
As práticas discursivas delimitam os dizeres, por isso, determinados discursos devem dizer coisas específicas, a fim de seguirem um hábito e se configurarem dentro de tal. A língua é constitutiva da formulação dos dizeres. Logo, um discurso ganha sentido e referência a partir desse campo.
Definir o que se enquadra como literário ou não é um tanto difícil. Porém, é fácil notar que a literatura se inscreve em construções tão singulares, que se pensa que não tem outra maneira de dizer a não ser aquela proposta. Quem já leu poucas páginas de José Saramago, percebe isso muito bem: as pausas, as pontuações, a escolha de cada palavra contribui para um dizer único que transcende um objetivo linguístico. Ou seja, paramos de pensar em um dizer injuntivo, argumentativo, descritivo ou expositivo… mas focalizamos no modo como tal enunciado invoca uma infralíngua, ou seja, uma língua diferente daquela comum.
Observando a opacidade dessa língua, entendemos que não há uma só língua: há a interlíngua, ou seja, registros diversos que são efetivamente usados com suas marcas heterogêneas.
O campo literário precisa sustentar diferentes cenografias: literatura digital, slam, button poetry, rap… entre tantos outros textos que constituem dizeres. É na tessitura desses elementos diversos que percebemos que existe uma rede de aparelhos que constitui um Illuso, que se projeta e se materializa numa mensagem harmoniosa, fascinante, imensurável — e que faz perder o fôlego.
Dizer “Deve ser difícil viver na pele do outro” é diferente de proferir “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Percebe?
Entender o literário é depreender que é a escavação de um modo de dizer que é colocado como um modo diferente do modo como todos falam normalmente, implicando um código linguageiro específico: uma interlíngua. Assim, também identificamos que o literário não tem um objeto final a não ser o de expressar e sensibilizar o outro, dentro de uma subjetividade que por mais que permeie um supralíngua, faz parte de uma interlíngua extrema e perceptível.